"Eu acredito em minhas possibilidades e potencialidades. Eu faço a minha existência aqui e agora." [Ana Carolina]

terça-feira, 28 de maio de 2013

Filme: O Som do Coração em uma interface com a teoria Winnicottiana

AUTORAS DO TEXTO: Ana Carolina Lima da Silva & Káthia Priscila Pereira Neves.
Cópias apenas mediante autorização das autoras. Plágio é crime!



“Hoje, desejo dizer: ‘Após ser – fazer e deixar-se fazer. Mas ser, antes de tudo’.” (Winnicot, 1975, p. 120).


Evan Taylor vive toda sua infância em um orfanato, à espera de encontrar seus pais. Ele herda de seu pai Louis, guitarrista de rock, e sua mãe Lyla, violoncelista clássica, o amor e o talento musical que vai desenvolvendo no decorrer da história. Sua vida no orfanato é composta por muitos conflitos, principalmente com os outros garotos que convivem com ele, pois Evan acredita encontrar seus pais através da música que ouve. Os demais garotos do orfanato se irritam com a afirmação de Evan, porque em sua maioria, já desistiram de reencontrar seus pais.
O garoto vive a ausência de seus pais e consequentemente a angústia. Desse modo, ele se apega à música como uma forma de ilusionar a presença de seus pais: “Ouça! Consegue ouvir? A música?! Eu consigo ouvi-la em qualquer lugar. No vento. No ar. Na luz. Está ao nosso redor. A gente precisa se abrir. A gente só precisa... ouvir.” (Trecho da fala de Evan Taylor). Assim, a procura por seus pais é intensa e incansável e Evan não mede esforços para conseguir encontrá-los, fugindo então, do orfanato em que vive. O garoto segue sem rumo, apenas ouvindo a música. A fim de encontrar seus pais, ele caminha e chega até à cidade de Nova Iorque, onde se depara com o agito e os perigos de uma metrópole, mas, onde a música ainda se faz presente para si.

Onde eu cresci, tentaram me fazer parar de ouvir música. Mas, quando eu estou sozinho... Ela cresce dentro de mim. E eu acho que se aprendesse como tocá-la, eles talvez me ouvissem e saberiam que sou o filho deles. E me achariam. (...) Às vezes, o mundo tenta arrancar isso de você. Mas eu acredito na música assim como alguns acreditam em contos de fadas. Gosto de imaginar que o que ouço, vem da minha mãe e do meu pai. Talvez as notas que eu ouço, sejam as mesmas que eles escutaram na noite em que se conheceram. Talvez tenham se reencontrado assim... como vão me reencontrar. (Trecho da fala de Evan Taylor).


Assim, Evan Taylor demonstra que sabe que o que ouve pode não ser real, e sim fruto de sua imaginação. Entretanto, ele faz o uso da transicionalidade como preenchimento da angústia da ausência de seus pais, assim como afirma Winnicott:

Os fenômenos transicionais representam os primeiros estágios do uso da ilusão, sem a qual não há para o ser humano sentido algum na ideia de um relacionamento com um objeto percebido pelos outros como externo a ele. (WINNICOTT, 2000, p. 327)

Em outras palavras, Evan Taylor faz uso da ilusão através da música que só ele ouve, pois tal ilusão remete a um sentimento de pertencimento do fenômeno como sendo dele e não externo a ele. Por isso, as pessoas não o ouvem, a música está dentro dele e vai levá-lo ao encontro com seus pais.

A angústia pela ausência materna pode ser aplacada pela própria criança a partir de sua capacidade de interagir com o restante do mundo externo. A ausência efetiva da mãe, em última instância, pode ser a possibilidade de criação de um mundo repleto de novas alternativas e possibilidades. A ausência materna pode ser a possibilidade de entrada, na vida da criança, de novos objetos com os quais ela interage significativamente.(DEZAN, 2010, p. 49)


Em meio a tantos acontecimentos, Evan conhece algumas pessoas em Nova Iorque, e dentre elas, um homem que se propõe a ajudá-lo, o cantor de rua Wizard, mais conhecido como Mago. Esperto e sagaz, Mago demonstra preocupação com o garoto e promete orientá-lo tanto na música, quanto na procura por seus pais. Tal promessa se deve ao fato de Mago vivenciar uma cena em que Evan toca um instrumento musical com maestria. O garoto afirma nunca ter tocado qualquer instrumento e, no entanto, brinca com o mesmo em uma extrema felicidade.
Desse modo, não podemos afirmar que o instrumento musical representa o objeto transicional, pois este deve ser um objeto fixo “(...) entre o polegar e o ursinho, entre o erotismo oral e a verdadeira relação objetal, entre a atividade da criatividade primária e a projeção do que já teria sido introjetado (...)” (WINNICOTT, 2000, p. 317) e que são usados em um dado período da infância, não pertencem ao corpo do bebê (não são, por exemplo, o polegar que é chupado) nem são plenamente reconhecidos como a realidade externa compartilhada no social. O garoto tem a esperança de que o uso do objeto e o engajamento no fenômeno música, esta que ele deseja reproduzir do seu mundo interno para o externo, o levará de volta aos pais perdidos a partir do momento em que ela for ouvida por eles. 
No entanto, Mago começa pouco a pouco a transformar o menino, iniciando primeiramente a mudança do nome Evan Taylor para August Rush. Em seguida, levando-o a cantar em praças, com a falsa finalidade de que seus pais possam encontrá-lo. Porém, o maior objetivo de Mago, era a obtenção de dinheiro através do talento único de Evan.
August Rush aceita a ideia e inicia suas apresentações em ruas. Ele brinca com os instrumentos musicais que tem acesso, principalmente com o violão, bem como com a composição de suas canções. 
Em um primeiro contato com o violão, Evan brinca com o objeto, assim como Winnicott propusera o termo, a partir do entendimento da noção de transicionalidade. A transicionalidade está no encontro entre o mundo psíquico e o mundo socialmente construído. Este campo intermediário constituído tanto pela realidade interna quanto pela realidade externa é fundamental para entender o brincar de Winnicott. Esta área intermediária tem a ver com a crescente capacidade do bebê de perceber e aceitar a realidade socialmente construída. Trata-se de uma transição que começa com a ilusão do bebê, que se percebe como potente e criador do mundo que o circunscreve, passa pela desilusão quanto à sua onipotência e chega a certa aceitação da realidade construída pelo social. Na vida adulta, esta área intermediária está expressa nas artes, religião e cultura em geral; e em crianças e adultos a experiência ilusória não desaparece por completo. Para Winnicott, o espaço brincar é potencial, o brincar é fazer, pois a relação com o mundo implica uma manipulação, fazer algo, o que acarreta o sujeito a imprimir-se nesse fazer.
Em seguida, agora como August Rush, o garoto toca no Central Park com a mesma intensidade em que tocara pela primeira vez. Ao tocar, sua expressão corporal e facial dão indicativos de que aquele momento é uma brincadeira, um momento só dele, um espaço onde ele pode criar livremente. Assim, o garoto imprime a sua subjetividade no fenômeno transicional: a música. Através dos instrumentos musicais e de qualquer som que o leve a ouvir a música, o garoto se implica no fazer música, utilizando seu conteúdo interno e preenchendo a angústia da ausência de seus pais.
Logo, August Rush descobre um coral em uma Igreja, onde passa boa parte do dia compondo notas musicais. Esta composição revela novamente um brincar, pois ele utiliza o espaço para potencializar seus desejos. Vê-se claramente, que o garoto escreve com prazer e alegria, imprimindo sua subjetividade no brincar. Ele expõe os seus conteúdos internos para o mundo externo. Em seguida, as pessoas da Igreja percebem o seu dom para com a música e levam-no para a Universidade de Julliard, com a finalidade de aprimorar toda a sua vocação. Mesmo na universidade ele brinca. O seu brincar no meio rígido da academia se dá pela forma como ele escreve suas composições em notação musical, não utilizando os símbolos musicais de acordo com as regras da grafia musical e na forma como ele brinca de fazer música com diversos instrumentos. Ele escreve a música que compõe, brincando, elaborando um desenho de notas e claves.
Nesse instante, pode-se perceber a cultura nova iorquina como sendo uma cultura musicalizada e que valoriza a musicalidade dos outros. August Rush foi acolhido e teve espaço para desenvolver suas potencialidades musicais, com base no uso do fenômeno transicional. Assim, foi dada a oportunidade de criatividade e de desenvolvimento de suas potencialidades, porque este ambiente se apresenta como um ambiente suficientemente bom ao seu desenvolvimento. Ele só tem este ambiente por estar imerso em uma cultura que valoriza a música, o que muito o ajudou a obter uma grande aquisição cultural, através de um ambiente que possibilitou o desenvolvimento de seu talento musical.
Ainda com relação à cultura, o garoto percebe que ele, diferentemente das demais crianças, não tem a família, pai e mãe, o que o torna diferente e o coloca em uma situação de falta e ‘despertenciamento’, (a palavra refere-se ao sentido do garoto perceber que pertenceu a alguém, aos pais, mas, que por algum motivo além da sua compreensão, deixou de pertencer. Além do mais, se sentia como um dia acredita ter se sentido, próximo dos pais, mas, agora distanciado). Como exemplo, a cena em que o garoto chora ao ver crianças brincando com suas mães no playground, sorrindo em direção a elas e depois correndo em direção delas para um abraço. Nesta cena, ele observa as crianças com suas respectivas mães, segurando firmemente o violão, e após a cena ele começa a tocá-lo. 
Desse modo, pode-se inferir que ele se apega ao fenômeno transicional música para se aproximar de seus pais, mesmo que isto não seja efetivamente concreto. Para ele, os pais estão próximos dele como com as outras crianças, afinal, mesmo não tendo o abraço como as demais que o garoto vê, ele sente o abraço através da música.
Entretanto, o acolhimento e aquisição cultural também são adquiridos por August Rush, quando Mago lhe acolhe, ensina-lhe tudo o que sabe sobre a música e como tocar instrumentos e lhe oferece o ponto principal do Central Park para que o garoto possa fazer suas apresentações e consequentemente lucrar mais dinheiro.
O garoto utiliza esses momentos de apresentações como forma de sentir a presença de seus pais. Nesses momentos, ele desenvolve suas potencialidades e cria seus pais, vivenciando juntamente à música, a presença de seus pais.

A criatividade diz respeito à forma como o indivíduo lida com os objetos externos, relacionando-os com seu mundo interno. (DEZAN, 2010, p . 47)

Não obstante, ao término do filme, entre tantos momentos perturbadores na vida de August Rush, finalmente ele consegue tornar a sua música conhecida. Ele faz uma apresentação em um concerto musical, visando principalmente, encontrar seus pais através dos sons que produz. O garoto escreveu e criou cada nota e o som que cada instrumento deveria reproduzir. Ele desenvolveu sua capacidade musical e finalmente reencontrou seus pais, da mesma forma como sempre desejara reencontrá-los: através da música. Desse modo, o garoto afirma novamente: “A música está ao nosso redor. A gente só precisa... ouvir.”


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DEZAN, A.L.M.B. A angústia, a tristeza e a transicionalidade: anversa construção. In.: Psicanálise e Literatura: Rabiscos no Espaço Transicional. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia do Instituto de Psicologia da UnB (Mestrado em Psicologia Clínica e Cultura). Brasília, 2010, p. 47-49. 
WINNICOTT, D.W. Objetos Transicionais e Fenômenos Transicionais. In.: Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2000, cap. XVIII.


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AUTORAS DO TEXTO: Ana Carolina Lima da Silva & Káthia Priscila Pereira Neves.

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