"Eu acredito em minhas possibilidades e potencialidades. Eu faço a minha existência aqui e agora." [Ana Carolina]

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

A violência sempre existiu?

Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder.

(A ordem do discurso, Michel Foucault).

A violência social tem sua origem, sem dúvidas, no seio familiar, em que a violência socialmente reprimida no meio público encontra seu respaldo como instrumento permitido e necessário de educação. É reconhecido que essa cultura secularmente arraigada de punir para educar, tem diminuído, mas ainda sobrevive em famílias onde há falta de informação, que pode ter relação direta com a situação socioeconômica.
A violência em suas diversas manifestações tem sido objeto de estudo bastante explorado no âmbito das ciências humanas. As teorias acerca da violência visam, de maneira geral, a compreensão dos sentidos da violência e do estabelecimento de sua legitimidade. Weber (2008 apud Angelim, 2009) aponta que o Estado tem como uma de suas funções o monopólio do uso legítimo da violência, não podendo nenhum grupo ou indivíduo, senão no exercício das funções do Estado, fazer uso da força física. Assim, o Estado se consolida como única fonte de ao exercício legítimo da violência e esta se apresenta como um fenômeno heterogêneo e que se apresenta como uso do poder que transgride determinadas normas sociais.
Gilberto Velho (1999 apud Angelim, 2009) afirma que:

A violência não se limita ao uso da força física, mas a possibilidade ou ameaça de usá-la constitui dimensão fundamental de natureza. Vê-se que, de início, associa-se a uma ideia de poder, quando se enfatiza a possibilidade de imposição de vontade, desejo, ou projeto de um ator sobre outro. (p. 20)

Desse modo, a violência se apresenta como o resultado de uma série de relações de poder permeadas pelo uso da força. O discurso sobre violência aponta, então, para as possibilidades de uso legítimo e ilegítimo da força (ANGELIM, 2009).
Por outro lado, Minayo (2009) discute a violência familiar investigando suas origens, causas e fatores desencadeantes, além de apontar situações frequentes que ocasionam a perpetuação e reflexo da violência intrafamiliar.
De acordo com a autora, os índices de agressões familiares têm como causa principal a cultura patriarcal de poder em que os conflitos devem ser resolvidos e/ou ensinados a partir da violência. Culturalmente, a violência é permitida e requerida entre os familiares, não dando margem, muitas vezes, a outros modos de resolução de problemas. A punição física ou a violência psicológica, seja ao parceiro, à criança ou adolescente, ou ao idoso, legitimam-se pelo estresse que pode ser geral, conjugal ou laboral; bem como o alcoolismo, a vulnerabilidade socioeconômica e o porte de armas de fogo.
O estresse está associado a inúmeras causas, visto que os sujeitos acreditam não ter capacidade de resposta suficiente à demanda familiar, conjugal, trabalhista, etc., e o sujeito acaba extravasando o estresse com a violência. Além disso, a precariedade socioeconômica é fator desencadeante do estresse e pode aumentar a possibilidade da violência ocorrer como modo de rebaixamento do estresse.
Já o estresse laboral, ligado a insatisfações com a função exercida e principalmente com o status profissional e a remuneração, decorre a instabilidade emocional, cujas consequências recaem sobre os membros da família e estão diretamente relacionados à situação socioeconômica familiar.
Por outro lado, em populações onde os valores tradicionais, instaurados sobre o pilar da violência como comportamento comum e natural de resolução de conflitos são mais arraigados, a posse de armas de fogo é fator altamente potencializador e agravante das agressões.
O alcoolismo aparece como fator desencadeante da violência sob vários aspectos, sendo apontado como instrumento de coragem e legitimação ao uso da força para manter o controle da família e afirmar seu papel identitário familiar. Constata-se que a combinação do status ocupacional, da bebida e da aprovação da violência como forma de se relacionar no interior da família, constitui um fator desencadeador dos abusos.
Minayo (2009) ainda aponta que a dinâmica da violência intrafamiliar segue algumas características comuns. Por exemplo, a dinâmica da violência contra a mulher se fundamenta em questões de gênero, principalmente, visto que há um patriarcalismo sustentado pela razão de honra que ainda move diversos homens, que se julgam guardiões e, portanto, se veem obrigados a garantir e controlar suas parceiras, assegurando sua fidelidade no desafio com os outros homens, e enxergando na masculinidade o lugar reservado à vasão dos instintos incontroláveis, da agressividade e da violência. Toda a dinâmica se baseia no sentimento de posse do marido pela esposa.
A compreensão das relações entre os sexos, por meio da construção social dos gêneros, permitiu a reflexão e o estudo sobre o exercício de poder nas relações interpessoais entre homens e mulheres. Ao conceber o gênero como uma forma primária de dar significado às relações de poder, tanto na esfera privada quanto na esfera pública, os feminismos abriram espaço para a discussão das relações interpessoais e dos modelos de família e casamento (ANGELIM, 2009).
Minayo (2009) também discute sobre possíveis atuações para mudança do ciclo de violência, modificando os contextos seculares em que o ciclo das agressões se perpetua. A questão fundamental está em nos conscientizarmos e desmistificarmos a cultura patriarcal em que há diferentes modos de tratamento do homem com a mulher, dos pais com os filhos e dos filhos com os pais idosos; pois deve haver um compartilhamento de tarefas que contribuam para uma convivência familiar saudável, representando segurança e diminuição da propagação do ciclo da violência.
Desse modo, podemos pensar em uma intervenção voltada às famílias, uma vez que é quem origina e compõem a construção das identidades sociais. Para isso, além de discussões, o Estado deve promover, junto aos cidadãos e profissionais, políticas públicas que conscientizem e os façam se perceberem como agentes de transformação de sua própria realidade social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ANGELIM, F. P. A importância da intervenção multidisciplinar face à complexidade da violência doméstica. In: LIMA, F.R. & SANTOS, C. Violência Doméstica. Vulnerabilidades e desafios na intervenção criminal e multidisciplinar. 2009, pp. 125-136.

ANGELIM, F. P. Mulheres vítimas de violência: dilemas entre a busca da intervenção do Estado e a tomada de consciência. Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia, do Instituto de Psicologia da UnB (Doutorado em Psicologia Clínica e Cultura). Brasília, 2009.

MINAYO, M. C. S. Vulnerabilidade à violência intrafamiliar. In.: LIMA, F. R.; SANTOS, C. Violência doméstica: vulnerabilidades e desafios na intervenção criminal e multidisciplinar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, pp. 277-293.

Nenhum comentário:

Postar um comentário