Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca
coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com
o desejo e com o poder.
(A ordem do discurso, Michel Foucault).
A
violência em suas diversas manifestações tem sido objeto de estudo bastante
explorado no âmbito das ciências humanas. As teorias acerca da violência visam,
de maneira geral, a compreensão dos sentidos da violência e do estabelecimento
de sua legitimidade. Weber (2008 apud
Angelim, 2009) aponta que o Estado tem como uma de suas funções o monopólio do
uso legítimo da violência, não podendo nenhum grupo ou indivíduo, senão no
exercício das funções do Estado, fazer uso da força física. Assim, o Estado se
consolida como única fonte de ao exercício legítimo da violência e esta se
apresenta como um fenômeno heterogêneo e que se apresenta como uso do poder que
transgride determinadas normas sociais.
Gilberto
Velho (1999 apud Angelim, 2009)
afirma que:
A violência não
se limita ao uso da força física, mas a possibilidade ou ameaça de usá-la
constitui dimensão fundamental de natureza. Vê-se que, de início, associa-se a
uma ideia de poder, quando se enfatiza a possibilidade de imposição de vontade,
desejo, ou projeto de um ator sobre outro. (p. 20)
Desse
modo, a violência se apresenta como o resultado de uma série de relações de
poder permeadas pelo uso da força. O discurso sobre violência aponta, então,
para as possibilidades de uso legítimo e ilegítimo da força (ANGELIM, 2009).
Por
outro lado, Minayo (2009) discute
a violência familiar investigando suas origens, causas e fatores
desencadeantes, além de apontar situações frequentes que ocasionam a
perpetuação e reflexo da violência intrafamiliar.
De acordo com a autora, os índices de agressões familiares têm como
causa principal a cultura patriarcal de poder em que os conflitos devem ser
resolvidos e/ou ensinados a partir da violência. Culturalmente, a violência é
permitida e requerida entre os familiares, não dando margem, muitas vezes, a
outros modos de resolução de problemas. A
punição física ou a violência psicológica, seja ao parceiro, à criança ou
adolescente, ou ao idoso, legitimam-se pelo estresse que pode ser geral, conjugal
ou laboral; bem como o alcoolismo, a vulnerabilidade socioeconômica e o porte
de armas de fogo.
O
estresse está associado a inúmeras causas, visto que os sujeitos acreditam não
ter capacidade de resposta suficiente à demanda familiar, conjugal, trabalhista,
etc., e o sujeito acaba extravasando o estresse com a violência. Além disso, a
precariedade socioeconômica é fator desencadeante do estresse e pode aumentar a
possibilidade da violência ocorrer como modo de rebaixamento do estresse.
Já o estresse laboral, ligado a insatisfações com a função
exercida e principalmente com o status profissional e a remuneração, decorre a
instabilidade emocional, cujas consequências recaem sobre os membros da família
e estão diretamente relacionados à situação socioeconômica familiar.
Por
outro lado, em populações onde os valores tradicionais, instaurados sobre o
pilar da violência como comportamento comum e natural de resolução de conflitos
são mais arraigados, a posse de armas de fogo é fator altamente potencializador
e agravante das agressões.
O
alcoolismo aparece como fator desencadeante da violência sob vários aspectos,
sendo apontado como instrumento de coragem e legitimação ao uso da força para
manter o controle da família e afirmar seu papel identitário familiar.
Constata-se que a combinação do status ocupacional, da bebida e da aprovação da
violência como forma de se relacionar no interior da família, constitui um
fator desencadeador dos abusos.
Minayo (2009) ainda aponta que a
dinâmica da violência intrafamiliar segue algumas características comuns. Por
exemplo, a dinâmica da violência contra a mulher se fundamenta em questões de
gênero, principalmente, visto que há um patriarcalismo sustentado pela razão de
honra que ainda move diversos homens, que se julgam guardiões e, portanto, se
veem obrigados a garantir e controlar suas parceiras, assegurando sua
fidelidade no desafio com os outros homens, e enxergando na masculinidade o
lugar reservado à vasão dos instintos incontroláveis, da agressividade e da
violência. Toda a dinâmica se baseia no sentimento de posse do marido pela
esposa.
A
compreensão das relações entre os sexos, por meio da construção social dos
gêneros, permitiu a reflexão e o estudo sobre o exercício de poder nas relações
interpessoais entre homens e mulheres. Ao conceber o gênero como uma forma
primária de dar significado às relações de poder, tanto na esfera privada
quanto na esfera pública, os feminismos abriram espaço para a discussão das
relações interpessoais e dos modelos de família e casamento (ANGELIM, 2009).
Minayo
(2009) também discute sobre possíveis atuações para mudança do ciclo de
violência, modificando os contextos seculares em que o ciclo das agressões se
perpetua. A questão fundamental está em nos conscientizarmos e desmistificarmos
a cultura patriarcal em que há diferentes modos de tratamento do homem
com a mulher, dos pais com os filhos e dos filhos com os pais idosos; pois deve
haver um compartilhamento de tarefas que contribuam para uma convivência
familiar saudável, representando segurança e diminuição da propagação do ciclo
da violência.
Desse
modo, podemos pensar em uma intervenção voltada às famílias, uma vez que é quem
origina e compõem a construção das identidades sociais. Para isso, além de
discussões, o Estado deve promover, junto aos cidadãos e profissionais,
políticas públicas que conscientizem e os façam se perceberem como agentes de
transformação de sua própria realidade social.
ANGELIM, F. P. A importância da intervenção multidisciplinar face à complexidade da violência doméstica. In: LIMA, F.R. & SANTOS, C. Violência Doméstica. Vulnerabilidades e desafios na intervenção criminal e multidisciplinar. 2009, pp. 125-136.
ANGELIM, F. P. Mulheres vítimas de violência: dilemas entre a busca da intervenção do Estado e a tomada de consciência. Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia, do Instituto de Psicologia da UnB (Doutorado em Psicologia Clínica e Cultura). Brasília, 2009.
MINAYO, M. C. S. Vulnerabilidade à violência intrafamiliar. In.: LIMA, F. R.; SANTOS, C. Violência doméstica: vulnerabilidades e desafios na intervenção criminal e multidisciplinar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, pp. 277-293.
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