"A pessoa mais bacana do mundo também tem um lado
perverso. E a pessoa mais arrogante pode ter dentro de si um meigo. Escolhemos
uma versão oficial para consumo externo, mas os nossos eus secretos também
existem e só estão esperando uma provocação para se apresentarem publicamente.
A questão é perceber se a pessoa com quem você convive ajuda você a revelar o
seu melhor ou o seu pior."
Martha
Medeiros.
A violência contra as mulheres representa uma grave violação dos
direitos humanos, que compromete a saúde e o desenvolvimento integral da mulher
na sociedade. Este tipo de violência trata-se de um fenômeno complexo e multifacetado,
cujo entendimento abrange uma compreensão de suas dimensões psíquica, social,
cultural e jurídica.
O autor corrobora tal perspectiva ao considerar a violência doméstica
como um processo social, judicial,
interpessoal e pessoal de interpretação de um relacionamento íntimo e
agressivo. Neste sentido, para compreender como as relações abusivas começam e
são mantidas na família, é necessário um olhar que abranja as relações
familiares e sociais como um todo, considerando, portanto, o caráter sistêmico
da violência doméstica.
Diante disso, precisamos refletir acerca do campo científico e suas
implicações, isto é, o conhecimento científico está em constantes reformulações
e questionamentos em que métodos, intervenções e teorias considerados eficazes dentro
de um modelo tradicional de ciência não têm sido capazes de explicar e
compreender acontecimentos complexos e multifacetados, os quais exigem do
profissional uma postura diferenciada daquela visão rotulada, reducionista e
objetiva. A nova ciência passa, portanto, a buscar formas mais integradas de
conhecimento e ação, enfatizando tanto o sujeito quanto o seu contexto.
A Psicologia, por sua vez, tem lidado com realidades complexas repletas
de contradições e paradoxos. Dentre estas, a intervenção em casos de violência
em diferentes contextos, seja na justiça, na saúde, na educação ou no próprio
consultório, que exigem ações mais flexíveis e interconectadas. A violência não
é um problema que se restrinja às práticas terapêuticas de consultório, mas que
requer mudança das relações sociais de maneira geral e, para isto, necessita da
articulação e cooperação do psicólogo com outros profissionais.
Assim, a Psicologia tem o compromisso de se reinventar e promover a
saúde e o bem-estar à sociedade. Isso é mudança. Mudança e ampliação da compreensão
do fenômeno da violência doméstica. O que antes era considerado como um
problema apenas do indivíduo, agora é compreendido em sua dimensão relacional.
A ênfase, portanto, está na relação. Contudo, isto não significa desconsiderar
a importância dos aspectos subjetivos, mas constata-se a necessidade de um
olhar mais amplo que contemple desde as demandas particulares do sujeito até
seu contexto social.
Desse modo, encontrar uma
abordagem que procure efetivamente buscar “soluções” para o problema, deve
envolver uma intervenção psicossocial a fim de procurar fortalecer a vítima e
promover sua conscientização dando-lhes ferramentas para se afirmar como
sujeito de direitos. Além disso, torna-se fundamental uma intervenção desta
natureza com o agressor que procure levá-lo a uma reflexão sobre seu padrão de
relacionamento familiar e sobre conceitos arraigados de gênero que a cultura
machista lhe impôs, para, com isto, buscar romper com padrões violentos de
comportamento. Um dos objetivos de tal intervenção está nesta
reflexão crítica dos papéis impostos a homens e mulheres que abordem a
naturalização social da violência.
O envolvimento tanto da
vítima quanto do agressor torna-se importante para que tais objetivos sejam
alcançados, possibilitando a reflexão sobre um estilo de vida conjugal que busque
mudar noções cristalizadas ao longo de um relacionamento em que os membros da
família utilizavam a violência para solucionar seus conflitos. Esta intervenção
favorece a compreensão das vítimas e dos autores sobre a dinâmica relacional
que constitui o ciclo da violência, oportunizando também às mulheres, uma
reflexão sobre suas tentativas de busca de ajuda, fatores de risco, bem como estimular
a ampliação de sua rede social de apoio.
De modo geral, o acompanhamento
psicossocial visa promover reflexões e recursos afetivos, cognitivos e sociais
que auxiliem na compreensão da dinâmica subjacente à violência. Isto, a fim de
eliminar ou reduzir sua ocorrência, uma vez que acabar com a violência
doméstica é, em partes, redefinir identidades e criar novas formas de
relacionamentos.
Além disso, a investigação psicossocial tem como objetivo orientar e
esclarecer as partes envolvidas no processo judicial, mostrando-lhes que há
outras formas de resolução de conflitos, os quais não devem ser solucionados
por meio da violência. Esta intervenção pode contribuir de forma significativa
para diminuir a relação de dominação e violência familiar.
Para se alcançar uma intervenção ampla que abarque a complexidade dos
casos de violência doméstica, faz-se necessário e fundamental uma intervenção
interdisciplinar. Esta intervenção requer a necessidade do aprendizado e
articulação com diversos campos do saber que possibilitem a produção de
conhecimento que vá além dos limites de diferentes áreas. Diante disso, a
atuação dos profissionais envolvidos é redimensionada conforme seus limites de
atuação e, assim, são convidados a integrarem uma intervenção mais ampla, a
qual envolve o trabalho coletivo e o respeito aos papeis distintos que cada um
desempenha. Interdisciplinaridade é a possibilidade de interação e comunicação
entre duas ou mais disciplinas, que tentam aproximar seus discursos e
transferir conhecimentos. Esta seria uma equipe de trabalho que valoriza mais
suas diferenças de pensamento e ação do que a busca por similaridades, ainda
que de modo articulado e afinado. Isto possibilita a multiplicidade de
discursos o que aumenta as alternativas de solução e encaminhamentos.
Posto isso, a Lei Maria da Penha, ainda que não trate diretamente da
interdisciplinaridade, trouxe avanços fundamentais nessa perspectiva ao
considerar a importância do envolvimento de diferentes áreas do saber para
intervir nos casos de violência doméstica. Assim, não restringe o
acompanhamento dos casos que chegam aos Tribunais apenas à área jurídica, por
exemplo.
A intervenção multidisciplinar, preconizada na Lei, suscita reflexões
acerca da necessidade de trabalho interdisciplinar a ser desenvolvido, isto é,
essa intervenção deve propor a construção de novas subjetividades a partir do
conhecimento e afirmação dos direitos humanos. Trata-se de uma necessidade em
viabilizar um processo de intervenção em casos de violência a partir do
pressuposto de um trabalho em equipe em que profissionais de diferentes áreas
ou especialidades desenvolvem atuações paralelas com objetivos integrados.
Isso traz novos desafios para a Psicologia na medida em que a
subjetividade é compreendida de maneira contextualizada, ou seja, como produto
de um processo dinâmico em que fazem
parte os avanços sociais, as mudanças nas estratégias de proteção do Estado e o
esforço pessoal de compreensão da realidade. É nessa condição de exercício da
subjetividade que reside a possibilidade de emancipação. É nesse contexto de um
novo projeto político que relaciona subjetividade e cidadania, que a Psicologia
precisa desenvolver novos referenciais teóricos e metodológicos para a sua
prática.
ANGELIM, F. P. Importância da intervenção multidisciplinar face à complexidade da violência doméstica. In.: LIMA, F. R.; SANTOS, C. Violência doméstica: vulnerabilidades e desafios na intervenção criminal e multidisciplinar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
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