"Eu acredito em minhas possibilidades e potencialidades. Eu faço a minha existência aqui e agora." [Ana Carolina]

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Intervenção multidisciplinar e violência doméstica

"A pessoa mais bacana do mundo também tem um lado perverso. E a pessoa mais arrogante pode ter dentro de si um meigo. Escolhemos uma versão oficial para consumo externo, mas os nossos eus secretos também existem e só estão esperando uma provocação para se apresentarem publicamente. A questão é perceber se a pessoa com quem você convive ajuda você a revelar o seu melhor ou o seu pior."

Martha Medeiros.

A violência contra as mulheres representa uma grave violação dos direitos humanos, que compromete a saúde e o desenvolvimento integral da mulher na sociedade. Este tipo de violência trata-se de um fenômeno complexo e multifacetado, cujo entendimento abrange uma compreensão de suas dimensões psíquica, social, cultural e jurídica.
O autor corrobora tal perspectiva ao considerar a violência doméstica como um processo social, judicial, interpessoal e pessoal de interpretação de um relacionamento íntimo e agressivo. Neste sentido, para compreender como as relações abusivas começam e são mantidas na família, é necessário um olhar que abranja as relações familiares e sociais como um todo, considerando, portanto, o caráter sistêmico da violência doméstica.
Diante disso, precisamos refletir acerca do campo científico e suas implicações, isto é, o conhecimento científico está em constantes reformulações e questionamentos em que métodos, intervenções e teorias considerados eficazes dentro de um modelo tradicional de ciência não têm sido capazes de explicar e compreender acontecimentos complexos e multifacetados, os quais exigem do profissional uma postura diferenciada daquela visão rotulada, reducionista e objetiva. A nova ciência passa, portanto, a buscar formas mais integradas de conhecimento e ação, enfatizando tanto o sujeito quanto o seu contexto.
A Psicologia, por sua vez, tem lidado com realidades complexas repletas de contradições e paradoxos. Dentre estas, a intervenção em casos de violência em diferentes contextos, seja na justiça, na saúde, na educação ou no próprio consultório, que exigem ações mais flexíveis e interconectadas. A violência não é um problema que se restrinja às práticas terapêuticas de consultório, mas que requer mudança das relações sociais de maneira geral e, para isto, necessita da articulação e cooperação do psicólogo com outros profissionais.

Assim, a Psicologia tem o compromisso de se reinventar e promover a saúde e o bem-estar à sociedade. Isso é mudança. Mudança e ampliação da compreensão do fenômeno da violência doméstica. O que antes era considerado como um problema apenas do indivíduo, agora é compreendido em sua dimensão relacional. A ênfase, portanto, está na relação. Contudo, isto não significa desconsiderar a importância dos aspectos subjetivos, mas constata-se a necessidade de um olhar mais amplo que contemple desde as demandas particulares do sujeito até seu contexto social.
Desse modo, encontrar uma abordagem que procure efetivamente buscar “soluções” para o problema, deve envolver uma intervenção psicossocial a fim de procurar fortalecer a vítima e promover sua conscientização dando-lhes ferramentas para se afirmar como sujeito de direitos. Além disso, torna-se fundamental uma intervenção desta natureza com o agressor que procure levá-lo a uma reflexão sobre seu padrão de relacionamento familiar e sobre conceitos arraigados de gênero que a cultura machista lhe impôs, para, com isto, buscar romper com padrões violentos de comportamento. Um dos objetivos de tal intervenção está nesta reflexão crítica dos papéis impostos a homens e mulheres que abordem a naturalização social da violência.
O envolvimento tanto da vítima quanto do agressor torna-se importante para que tais objetivos sejam alcançados, possibilitando a reflexão sobre um estilo de vida conjugal que busque mudar noções cristalizadas ao longo de um relacionamento em que os membros da família utilizavam a violência para solucionar seus conflitos. Esta intervenção favorece a compreensão das vítimas e dos autores sobre a dinâmica relacional que constitui o ciclo da violência, oportunizando também às mulheres, uma reflexão sobre suas tentativas de busca de ajuda, fatores de risco, bem como estimular a ampliação de sua rede social de apoio.
De modo geral, o acompanhamento psicossocial visa promover reflexões e recursos afetivos, cognitivos e sociais que auxiliem na compreensão da dinâmica subjacente à violência. Isto, a fim de eliminar ou reduzir sua ocorrência, uma vez que acabar com a violência doméstica é, em partes, redefinir identidades e criar novas formas de relacionamentos.
Além disso, a investigação psicossocial tem como objetivo orientar e esclarecer as partes envolvidas no processo judicial, mostrando-lhes que há outras formas de resolução de conflitos, os quais não devem ser solucionados por meio da violência. Esta intervenção pode contribuir de forma significativa para diminuir a relação de dominação e violência familiar.
Para se alcançar uma intervenção ampla que abarque a complexidade dos casos de violência doméstica, faz-se necessário e fundamental uma intervenção interdisciplinar. Esta intervenção requer a necessidade do aprendizado e articulação com diversos campos do saber que possibilitem a produção de conhecimento que vá além dos limites de diferentes áreas. Diante disso, a atuação dos profissionais envolvidos é redimensionada conforme seus limites de atuação e, assim, são convidados a integrarem uma intervenção mais ampla, a qual envolve o trabalho coletivo e o respeito aos papeis distintos que cada um desempenha. Interdisciplinaridade é a possibilidade de interação e comunicação entre duas ou mais disciplinas, que tentam aproximar seus discursos e transferir conhecimentos. Esta seria uma equipe de trabalho que valoriza mais suas diferenças de pensamento e ação do que a busca por similaridades, ainda que de modo articulado e afinado. Isto possibilita a multiplicidade de discursos o que aumenta as alternativas de solução e encaminhamentos.
Posto isso, a Lei Maria da Penha, ainda que não trate diretamente da interdisciplinaridade, trouxe avanços fundamentais nessa perspectiva ao considerar a importância do envolvimento de diferentes áreas do saber para intervir nos casos de violência doméstica. Assim, não restringe o acompanhamento dos casos que chegam aos Tribunais apenas à área jurídica, por exemplo.
A intervenção multidisciplinar, preconizada na Lei, suscita reflexões acerca da necessidade de trabalho interdisciplinar a ser desenvolvido, isto é, essa intervenção deve propor a construção de novas subjetividades a partir do conhecimento e afirmação dos direitos humanos. Trata-se de uma necessidade em viabilizar um processo de intervenção em casos de violência a partir do pressuposto de um trabalho em equipe em que profissionais de diferentes áreas ou especialidades desenvolvem atuações paralelas com objetivos integrados.
Isso traz novos desafios para a Psicologia na medida em que a subjetividade é compreendida de maneira contextualizada, ou seja, como produto de um processo dinâmico em que fazem parte os avanços sociais, as mudanças nas estratégias de proteção do Estado e o esforço pessoal de compreensão da realidade. É nessa condição de exercício da subjetividade que reside a possibilidade de emancipação. É nesse contexto de um novo projeto político que relaciona subjetividade e cidadania, que a Psicologia precisa desenvolver novos referenciais teóricos e metodológicos para a sua prática.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ANGELIM, F. P. Importância da intervenção multidisciplinar face à complexidade da violência doméstica. In.: LIMA, F. R.; SANTOS, C. Violência doméstica: vulnerabilidades e desafios na intervenção criminal e multidisciplinar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

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