“Se o cotidiano lhe parece pobre, não o acuse: acuse a si próprio de não ser muito bom poeta para extrair suas próprias riquezas.”
(Rainer Rilke)
O artigo
discutido nesta resenha aborda a questão dos papéis parentais e conjugais no
divórcio destrutivo em que há filhos pequenos e insere-se no contexto jurídico
durante a realização do estudo psicossocial de famílias em processos de disputa
de guarda e regulamentação de visitas, especificamente no Serviço e Atendimento
a Famílias com Ação Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e
Territórios (SERAF/TJDFT). A fundamentação teórica para compreensão dos
conteúdos obtidos, bem como para compreensão da dinâmica familiar, foi a Teoria
Familiar Sistêmica, pois esta abordagem “valoriza a
complexidade, a contextualidade, a recursividade, o indeterminismo, a
imprevisibilidade e a intersubjetividade dos fenômenos e das relações
trabalhadas.” (Juras e Costa, 2011, p. 223)
Para a realização desta pesquisa, participaram
três famílias divorciadas que entraram na Justiça buscando a regularização
judicial da guarda e visita dos filhos, todos eles com menos de 12 anos de
idade, uma vez que nesta faixa etária, as crianças se mostram
mais vulneráveis a este processo, por perceberem a dinâmica violenta sem
estarem psiquicamente instrumentalizadas para lidar com o conflito e dele se
afastar. A análise de dados foi feita a partir da análise de conteúdo que
possibilita uma construção interpretativa com base em zonas de sentido.
Entretanto,
neste estudo, os autores apontam um nome reflexivo para a uma dinâmica familiar
violenta após o divórcio, em que prevalecem sentimentos agressivos entre os
ex-cônjuges, incluindo terceiros no conflito. Tal conflito se denomina “divórcio
destrutivo”.
O divórcio
destrutivo é um fenômeno que exige uma multiplicidade de olhares, entendimentos,
posturas e contextos que devem ser considerados. Essas características das
famílias e, consequentemente, do divórcio destrutivo, promovem a formulação de
questionamentos. Assim, este não é um fenômeno restrito aos membros do
ex-casal, pois envolve diversos subsistemas familiares (parental, conjugal,
transgeracional, etc) e sistemas institucionais, como a Justiça.
A principal característica
de uma relação em divórcio conflituoso é a existência de uma comunicação
patológica e simétrica, baseada na competitividade, tornando o divórcio uma
verdadeira guerra parental, em que o padrão comunicacional é caracterizado por
represálias, agressões, acusações, ameaças e desvalorização do lugar do outro.
Além disso, os autores apontam que há a destruição do ex-cônjuge,
responsabilização do outro pelo conflito, bem como a inclusão de terceiros; o
que torna a dinâmica familiar difícil e a disputa conjugal abre espaço ao
esquecimento sobre a importância fundamental que o ex-cônjuge tem para a vida
do filho como pai ou mãe. Todo este conflito causa confusão entre os papeis
parentais e conjugais, colocando a conjugalidade em uma posição hierárquica
superior à parentalidade, acarretando em um não privilégio de cuidados pelos
filhos.
As
estratégias e os argumentos das famílias com
divórcio destrutivo no contexto judiciário não
visam a finalização da relação conjugal, pois a dinâmica conflituosa e de rompimento estabelecida contribui para o
estabelecimento de interdependências afetivas, de ações e de papéis parentais e conjugais.
Esta concepção é divergente do conceito de Síndrome de Alienação Parental (SAP),
uma vez que este termo preconiza a ideia de cortes afetivos e finalizações de
relações familiares. Desse modo, a SAP apresenta uma ótica simplista que não
abarca as complexidades e os paradoxos inerentes às dinâmicas de divórcio
destrutivo, em que rompimentos e interdependências
estão presentes.
Os autores abordam
outros três outros conceitos de base sistêmica que podem ser aplicados a esta
dinâmica conflituosa: a triangulação, as lealdades invisíveis e a
parentalização. A triangulação é um conceito que discute que “Quando a tensão
entre dois membros da família, normalmente os pais, atinge um nível de
ansiedade insuportável, uma terceira pessoa, habitualmente um filho, é triangulada
para reduzir a tensão no seio do sistema, até chegar a níveis toleráveis.”
(Juras e Costa, 2011, p.226). Contudo, quando isto ocorre frequentemente, tornando-se um
comportamento contínuo, o conflito não é resolvido e traz prejuízos
psicossociais para os membros da família. Em um processo de divórcio
destrutivo, ocorrem diversas triangulações, que incluem desde os filhos às
instituições que lidam com o processo, o que dá margem para a ocorrência das
lealdades invisíveis.
As lealdades ocorrem
quando um dos envolvidos, geralmente o mais frágil, se sente pressionado a
tomar partido de um dos genitores e a defendê-lo, em detrimento do outro.
Assim, a criança não vê alternativa a não ser escolhendo um dos genitores como
forma de alívio dos conflitos, bem como uma maneira de oferecer-lhe suporte
afetivo diante de uma disputa em que nenhum dos lados privilegia o cuidado com
o filho.
A parentalização é
quando se entrega ao filho, frequente e rigidamente, o papel parental, cobrando
deste, comportamentos e responsabilidades incompatíveis com o momento do
desenvolvimento em que se encontra. O filho se vê no dever de assumir um lugar
de responsabilidades e atitudes parentais.
Diante das discussões
levantadas, os autores realizaram uma análise de conteúdo que resultou na
diferenciação em zonas de sentido, e em todos os casos analisados, encontrou-se
a ocorrência destes conceitos.
Na primeira zona de sentido, percebe-se que as
crianças sabem que os pais estão em conflito e que o encontro entre eles é um
fator de risco para a ocorrência de discussões. Muitas vezes, para evitar este
contato, os pais fazem uso da parentalização, dando aos filhos a função de
negociar questões que deveriam ser discutidas pelos pais. Nos desenhos
analisados durante a pesquisa, as crianças expressaram as dificuldades que
sentem ao serem incluídas nos conflitos do casal, e que focam em geométricas, bordas e contornos como
uma maneira de evitar o sofrimento advindo desta situação
conflituosa. Os desenhos das
crianças são marcados pela expressão do distanciamento dos sujeitos em
conflito, por vezes, pela união fraternal, pela expressão da ansiedade gerada
ao se solicitar o desenho e pela falta de elementos que são comuns em desenhos
infantis. Assim, por consequência deste processo de parentalização sofrido
pelas crianças, elas não sabem em quem confiar, formando então, lealdades
invisíveis, ou até mesmo tornando-se manipuladoras, fazendo uso da situação
para conseguirem o que desejam.
A segunda
zona de sentido revela a forte relação fraternal que há entre os irmãos
envolvidos no litígio. Uma das vantagens desta relação é a proporção da vivência
de intimidade e companheirismo, além de dar um lugar onde a afetividade possa
se desenvolver, bem como a tranquilidade possa ser sentida e possa haver certo
provimento parental, tendo em vista, a possibilidade de aprendizagem dos papéis
sociais e cognitivos. Por estes benefícios, que o filho único ou privado de
relacionar-se com os irmãos, geralmente, sofre mais com os conflitos e lugares
distorcidos nos quais é colocado, devido à sobrecarga emocional e a
impossibilidade de falar e demonstrá-la.
A terceira
zona de sentido aborda as manifestações afetivas das crianças. Em todos os
casos elas demonstraram insatisfação com a situação de constante conflito em
que estão envolvidas. Tal situação acarreta no sofrimento sentido por elas e
que aparecem, comumente, através da agressividade, insegurança, sintomas
depressivos e racionalização das questões afetivas. Assim, proporcionar outras
atividades, que não incluam apenas o contexto familiar, e que deem a
possibilidade de expressão dos sentimentos contidos, pode auxiliar na promoção
de novos recursos internos, que sejam saudáveis e efetivos no enfrentamento do
conflito parental e da desorganização e desestruturação familiar.
Desse modo, os
autores concluíram que a criança que vivencia um divórcio conflituoso e
violento deve ser escutada, priorizando os interesses e o bem estar da criança,
o que é imprescindível aos profissionais que lidam diariamente com estes casos.
Para tanto, devem instrumentalizar os pais a exercerem efetivamente o papel
parental, não priorizando a “guerra” estabelecida de ataque um contra o outro,
mas priorizar a criança e o cuidado da mesma exercendo, antes de tudo, o papel
de pai e mãe. Os profissionais devem fazer os pais sensíveis ao sofrimento gerado
para a criança, durante todo o processo, além dos danos ao desenvolvimento
dela, quando não há o manejo adequado e equilibrado da situação.
Por fim,
assim como os pais, temos um papel importante quando diante de um divórcio,
tornando o nosso olhar de perícia para além do auxílio ao juiz, colocando um
pai como melhor que o outro. O nosso papel vai para um cuidado ao processo,
sabendo acolher a família e auxiliá-la a passar pelo divórcio, evitando a
desestruturação dos papeis parentais e, principalmente, do processo de desenvolvimento
pelo qual as crianças estão. Os pais devem lembrar primeiramente, que o
divórcio diz respeito à conjugalidade e não à parentalidade, o que nos mostra a
existência de dificuldade destes pais na diferenciação entre os papeis
conjugais e parentais no divórcio destrutivo com filhos pequenos.
JURAS, M. M. & COSTA, L. F. O divórcio destrutivo na perspectiva de filhos com menos de 12 anos. Estilos da Clínica, 2011, 16(1), 222-245.
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