“O fato sombrio é que somos a espécie mais cruel e implacável que jamais pisou sobre a Terra e que, embora possamos ficar horrorizados quando lemos,no jornal ou nos livros, histórias sobre atrocidades cometidas pelo homemcontra o homem, sabemos, intimamente, que cada um de nós abriga dentro desi os mesmos impulsos selvagens que levam ao assassínio, à tortura e àguerra." (Anthony Storr)
Penso, Ramos & Gusmão (2009) apontam que a adolescência é
caracterizada por uma “revolução biopsicossocial” (p. 214), uma vez que
apresenta mudanças significativas do ponto de vista biológico, bem como mudanças
de comportamentos, expressividade e características psicológicas que dependem
da cultura e sociedade em que estão inseridos e se desenvolvem.
Assim, podemos inferir
que a adolescência é caracterizada por uma “crise de identidade” (p. 214),
visto que cada idade tem suas próprias características, sua própria identidade.
Entretanto, a crise acentuada ocorre na adolescência e é determinada de
diversas maneiras por antecedentes e fatos ocorridos anteriormente e que também
podem determinar o que ocorrerá adiante. Desse modo, diante da crise de
identidade, o adolescente reagirá de acordo com a maneira que integrou os
elementos da identidade durante sua infância.
As dificuldades vividas
pelos sujeitos são influenciadas por suas relações, ou seja, a família do sujeito
reflete a construção da sua identidade. Assim, devemos considerar a condição
peculiar de desenvolvimento e a complexidade do lugar social do adolescente.
A paternidade é uma
construção social e subjetiva, diferentemente da maternidade que tem caráter
biológico, visto que a mulher adquire o compromisso a partir da gravidez,
enquanto o pai só adquire o seu papel e se sente verdadeiramente um pai, após o
nascimento ou a medida que constrói laços com os filhos, uma vez que o pai
ocupa um lugar que rompe a relação simbiótica entre mãe-filho.
Desse modo, podemos
discutir acerca das representações sociais dos papéis parentais. Atualmente,
ainda há predominância tradicionalista de que o pai é o provedor e a mãe é a
cuidadora dos filhos e da casa.
Entretanto, essas
dificuldades e confusões de figuras parentais podem ser vistas como dificuldade
transgeracional, isto é, muitas vezes os pais tiveram uma história carregada de
sofrimento, ao mesmo tempo em que tiveram um pai ausente na infância e
adolescência, e que os leva a projetar nas relações em que deveriam assumir a
figura de pai.
Em contrapartida, “a
imagem da mãe é uma mistura de santa e vítima” (p. 217), visto que é ela quem
protege o adolescente e quem sofre, luta, deixa se agredir sem conseguir
impedir que o filho seja expulso de casa.
Diante desta dinâmica,
o adolescente se vê preso entre um pai agressivo, duro, rígido, que não pode se
emocionar; e vê uma mãe vítima, santa, intocável, que apanha do marido,
trabalha para sustentar a casa e sofre pelos filhos. Tais representações
acentuam a crise da identidade no adolescente e tornam as relações e os papéis
familiares confusos.
Podemos perceber que
são pais e mães que não conseguem assumir seu papel parental e nem assumir o
lugar de orientação, educação e controle, sentindo-se perdidos e confusos e
permitindo aos filhos a função de “se auto-educar” (p. 217).
Assim, os adolescentes
acreditam que não devem se permitir sentir, pois as emoções o tornam
afeminados. Porém, permitir-se sentir emoções ou chorar, ocorre apenas diante
da figura materna, uma vez que mantêm grande respeito, pois a mãe é “percebida
com alguém a quem precisam proteger, cuidar, ouvir e ajudar” (p. 219).
Desse modo, percebemos
que a relação do casal parental se constitui como frágil, conflituosa ou
inexistente. Ou seja, a existência do casal deve anteceder a chegada dos filhos
para que os papéis parentais possam ser construídos independentes e pouco
relacionados com papéis conjugais. “Se este casal não se constituiu antes ou
logo após o nascimento dos filhos temos aqui um elemento a mais para dificultar
a relação que estes pais e mães estabelecem com seus filhos” (p. 221).
Assim, os adolescentes
nomeiam o pai como um “pai de botas”, que representa a figura policial: um
“pai” que se encontra em qualquer esquina para bater e espancar. Tais vivências
de violência e sofrimento familiar perpetuam as ações e comportamentos dos
adolescentes.
Diante de uma realidade
social confusa e ambígua, os adolescentes se sentem desprotegidos até mesmo
dentro das instituições e das medidas socioeducativas, uma vez que os papeis
dentro das instituições são confusos. “Talvez porque não reconheçam a
instituição como um lugar de educação, apoio e segurança, e não se vejam como
merecedores de um tratamento que os promovem, mas ao contrário, os discrimina
como inadaptados ou perigosos.” (p. 223)
Então, buscamos
discutir o papel da justiça e das instituições que executam medidas
socioeducativas, como promotoras de espaços onde a relação destes adolescentes
com a Lei paterna, perdida e falha nas relações familiares, poderia ser
resgatada. Ou seja, estas instituições podem educar e politizar, promovendo a
construção de sujeitos coletivos, baseando-se em relações que respeitem a
subjetividade e peculiaridade dos adolescentes.
A adolescência deve ser
concebida não como um período natural do desenvolvimento, mas como uma
representação, enquanto fato social e psicológico, juntamente à constituição
sócio-histórica do psiquismo humano. Nesta perspectiva, é preciso considerar e
explicitar os fatores históricos e sociais que produzem essa condição, buscando
estabelecer conexões significativas entre os diversos determinantes da produção
social desse fato. Assim, confrontamos o uso moralizante e normatizador de
conceitos científicos que culpabilizam o indivíduo por sua situação social, os
quais terminam legitimando relações de poder apoiados no princípio de uma
suposta neutralidade científica. Assim, devemos refletir sobre nossa função
social e se temos a desenvolvido sob a ética e responsabilidade ou se estamos
ocupando um lugar social de legitimador dessas relações e realidade social.
Referência Bibliográfica:
PENSO, M. A.; RAMOS, M. E. C. R. & GUSMÃO, M. M. O pai de botas e a santa mãe: a construção da identidade de adolescentes em conflito com a Lei. in.: LIMA, F. R., SANTOS, C. Violência doméstica: vulnerabilidades e desafios na intervenção criminal e multidisciplinar. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
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