"Eu acredito em minhas possibilidades e potencialidades. Eu faço a minha existência aqui e agora." [Ana Carolina]

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Família e adolescentes em conflito com a Lei

“O fato sombrio é que somos a espécie mais cruel e implacável que jamais pisou sobre a Terra e que, embora possamos ficar horrorizados quando lemos,
no jornal ou nos livros, histórias sobre atrocidades cometidas pelo homem
contra o homem, sabemos, intimamente, que cada um de nós abriga dentro de
si os mesmos impulsos selvagens que levam ao assassínio, à tortura e à
guerra." (Anthony Storr)

   Penso, Ramos & Gusmão (2009) apontam que a adolescência é caracterizada por uma “revolução biopsicossocial” (p. 214), uma vez que apresenta mudanças significativas do ponto de vista biológico, bem como mudanças de comportamentos, expressividade e características psicológicas que dependem da cultura e sociedade em que estão inseridos e se desenvolvem.
Assim, podemos inferir que a adolescência é caracterizada por uma “crise de identidade” (p. 214), visto que cada idade tem suas próprias características, sua própria identidade. Entretanto, a crise acentuada ocorre na adolescência e é determinada de diversas maneiras por antecedentes e fatos ocorridos anteriormente e que também podem determinar o que ocorrerá adiante. Desse modo, diante da crise de identidade, o adolescente reagirá de acordo com a maneira que integrou os elementos da identidade durante sua infância.
As dificuldades vividas pelos sujeitos são influenciadas por suas relações, ou seja, a família do sujeito reflete a construção da sua identidade. Assim, devemos considerar a condição peculiar de desenvolvimento e a complexidade do lugar social do adolescente.

A paternidade é uma construção social e subjetiva, diferentemente da maternidade que tem caráter biológico, visto que a mulher adquire o compromisso a partir da gravidez, enquanto o pai só adquire o seu papel e se sente verdadeiramente um pai, após o nascimento ou a medida que constrói laços com os filhos, uma vez que o pai ocupa um lugar que rompe a relação simbiótica entre mãe-filho.
Desse modo, podemos discutir acerca das representações sociais dos papéis parentais. Atualmente, ainda há predominância tradicionalista de que o pai é o provedor e a mãe é a cuidadora dos filhos e da casa.
Entretanto, essas dificuldades e confusões de figuras parentais podem ser vistas como dificuldade transgeracional, isto é, muitas vezes os pais tiveram uma história carregada de sofrimento, ao mesmo tempo em que tiveram um pai ausente na infância e adolescência, e que os leva a projetar nas relações em que deveriam assumir a figura de pai.
Em contrapartida, “a imagem da mãe é uma mistura de santa e vítima” (p. 217), visto que é ela quem protege o adolescente e quem sofre, luta, deixa se agredir sem conseguir impedir que o filho seja expulso de casa.
Diante desta dinâmica, o adolescente se vê preso entre um pai agressivo, duro, rígido, que não pode se emocionar; e vê uma mãe vítima, santa, intocável, que apanha do marido, trabalha para sustentar a casa e sofre pelos filhos. Tais representações acentuam a crise da identidade no adolescente e tornam as relações e os papéis familiares confusos.
Podemos perceber que são pais e mães que não conseguem assumir seu papel parental e nem assumir o lugar de orientação, educação e controle, sentindo-se perdidos e confusos e permitindo aos filhos a função de “se auto-educar” (p. 217).
Assim, os adolescentes acreditam que não devem se permitir sentir, pois as emoções o tornam afeminados. Porém, permitir-se sentir emoções ou chorar, ocorre apenas diante da figura materna, uma vez que mantêm grande respeito, pois a mãe é “percebida com alguém a quem precisam proteger, cuidar, ouvir e ajudar” (p. 219).
Desse modo, percebemos que a relação do casal parental se constitui como frágil, conflituosa ou inexistente. Ou seja, a existência do casal deve anteceder a chegada dos filhos para que os papéis parentais possam ser construídos independentes e pouco relacionados com papéis conjugais. “Se este casal não se constituiu antes ou logo após o nascimento dos filhos temos aqui um elemento a mais para dificultar a relação que estes pais e mães estabelecem com seus filhos” (p. 221).
Assim, os adolescentes nomeiam o pai como um “pai de botas”, que representa a figura policial: um “pai” que se encontra em qualquer esquina para bater e espancar. Tais vivências de violência e sofrimento familiar perpetuam as ações e comportamentos dos adolescentes.
Diante de uma realidade social confusa e ambígua, os adolescentes se sentem desprotegidos até mesmo dentro das instituições e das medidas socioeducativas, uma vez que os papeis dentro das instituições são confusos. “Talvez porque não reconheçam a instituição como um lugar de educação, apoio e segurança, e não se vejam como merecedores de um tratamento que os promovem, mas ao contrário, os discrimina como inadaptados ou perigosos.” (p. 223)
Então, buscamos discutir o papel da justiça e das instituições que executam medidas socioeducativas, como promotoras de espaços onde a relação destes adolescentes com a Lei paterna, perdida e falha nas relações familiares, poderia ser resgatada. Ou seja, estas instituições podem educar e politizar, promovendo a construção de sujeitos coletivos, baseando-se em relações que respeitem a subjetividade e peculiaridade dos adolescentes.
A adolescência deve ser concebida não como um período natural do desenvolvimento, mas como uma representação, enquanto fato social e psicológico, juntamente à constituição sócio-histórica do psiquismo humano. Nesta perspectiva, é preciso considerar e explicitar os fatores históricos e sociais que produzem essa condição, buscando estabelecer conexões significativas entre os diversos determinantes da produção social desse fato. Assim, confrontamos o uso moralizante e normatizador de conceitos científicos que culpabilizam o indivíduo por sua situação social, os quais terminam legitimando relações de poder apoiados no princípio de uma suposta neutralidade científica. Assim, devemos refletir sobre nossa função social e se temos a desenvolvido sob a ética e responsabilidade ou se estamos ocupando um lugar social de legitimador dessas relações e realidade social.

Referência Bibliográfica:

PENSO, M. A.; RAMOS, M. E. C. R. & GUSMÃO, M. M. O pai de botas e a santa mãe: a construção da identidade de adolescentes em conflito com a Lei. in.: LIMA, F. R., SANTOS, C. Violência doméstica: vulnerabilidades e desafios na intervenção criminal e multidisciplinar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

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